O estágio em Psicologia Clínica









no centro / o encontro / entre meu silêncio / e o estrondo (LEMINSKI)

            Ao falar um pouco acerca deste sujeito do desejo com o qual nos encontramos na psicoterapia, torna-se válido relatar também de que modo se dá este encontro, enfatizando a experiência de ser psicoterapeuta. Cheguei ao último ano de minha graduação e foi-me dada a oportunidade de realizar estágio no âmbito da Psicologia Clínica, atividade que integra parte de nossos estágios obrigatórios dentro do curso de Psicologia da FURG. A fim de que nossa tarefa seja cumprida de modo satisfatório, contamos com uma equipe técnica que oferece apoio à nossa prática. Dentre eles estão nossos professores orientadores, que supervisionam nosso estágio, profissionais com quem compartilhamos experiências e dividimos ideias. O CAP (FURG) - local onde atendemos à comunidade - conta com psicólogos técnicos, responsáveis por também realizar atendimentos e zelar pela qualidade dos serviços de nossa clínica-escola.
            Digo que meu estágio enquanto psicóloga clínica iniciou com muita expectativa, mas também com certo receio, uma espécie de medo de 'não saber o que fazer'. Creio que isso seja um pouco natural, levando em conta que ao longo da graduação nunca ficamos frente a frente com alguém com a incumbência de aliviar o sofrimento do sujeito. A meu ver, a Psicologia Clínica sempre foi uma área de destaque dentro de nosso ramo; de modo geral, quando falamos na profissão de psicólogo, o que pensamos é em uma pessoa atendendo pacientes em seu consultório. Foi com este propósito que decide fazer Psicologia: ser psicóloga clínica. Logo, este estágio tem sido um momento de desenvolver uma identidade enquanto psicoterapeuta. Busquei esta identidade na Psicanálise; optei por utilizar esta abordagem por ser aquela com qual mais me identifiquei ao longo da graduação, acredito ser o modo mais eficaz de apreender o sujeito em sua essência. Ter um orientador psicanalista ampliou meu conhecimento teórico e técnico acerca da Psicanálise e proporcionou-me uma visão diferenciada a respeito deste sujeito do desejo mencionado anteriormente.
            Em um dos últimos textos de sua obra - Construções em análise, de 1937 - Sigmund Freud caracteriza a análise como um processo de construção, como o próprio título de seu escrito já diz. "O analista completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado, até o fim" (p.279). Percebo ser este um modo interessante e original de encarar o processo terapêutico. Utilizo esta passagem por ela resumir bem o que fazemos enquanto terapeutas de orientação analítica: interpretar para construir o novo. "(...) tornar consciente o inconsciente, remover as repressões, preencher lacunas..."(FREUD, 1917, 1996, p. 437), eis a tarefa da psicanálise. Fazer com que o paciente descubra a dinâmica de seu inconsciente resulta em um processo de modificação do funcionamento de seu aparelho psíquico. Ao correlacionar com o conceito de construção, ocorre um encaixe entre o comportamento consciente e aquilo que está latente: o inconsciente explica o consciente.
            Certa feita, conheci uma psicoterapeuta que decorou seu consultório com um quadro, e este continha em seu interior um quebra-cabeça. Associei minha vivência a esta construção da qual Freud falou. Pensei logo que seu quadro tinha um valor simbólico, que estava ali a representar o que ela fazia enquanto psicoterapeuta: encaixar as peças do consciente com as do inconsciente, a fim de produzir algo belo. Para mim, esta beleza se instaura no momento em que o terapeuta fortalece o eu do paciente e, simultaneamente, maneja a resistência, tendo como meta o combate à repressão. A partir da realização de um bom trabalho terapêutico, o paciente torna-se o que teria sido possível na melhor das hipóteses, sob as condições mais favoráveis (FREUD, 1917, 1996, p. 437).
            Mencionei acima o quanto, por meio de nosso fazer, possibilitamos ao paciente a construção de um eu mais funcional. Não obstante, pode-se pensar esta metáfora de Freud também com relação a nossa construção enquanto profissionais, em refletir de que modo ela se dá. Creio que meu perfil de psicóloga clínica é um pouco o encaixe - aqueles, do quadro do consultório da psicoterapeuta - de todo o conhecimento que me foi passado durante a graduação, de práticas em estágios anteriores, dos profissionais com quem convivi e, naturalmente, de minhas experiências de vida. Entretanto, o alicerce desta construção, penso que se estabeleça no encontro entre mim e meus pacientes: eu construo algo, ao passo que eles me constroem. Ao pensar assim, entendo Lacan quando este diz que a análise é um processo dialético: no encontro de inconsciente com inconsciente - do terapeuta e do paciente - ocorre uma intersecção, através da qual é possível criar algo.
            Neste intervalo entre o início e o término de meu estágio, minha concepção de psicologia clínica mudou bastante. Aquele receio que tinha no início relacionava-se à minha falta de confiança quanto ao conhecimento teórico e técnico. Contudo, ao dar início a meus atendimentos, pude perceber que o essencial não reside naquilo que aprendemos no decorrer de nosso curso, mas sim em nossa escuta e olhar atentos, em estar com o paciente e, principalmente, no ato de senti-lo. Por meio de nossos sentimentos em relação ao paciente, torna-se possível atenuar o sofrimento dos mesmos. Cabe aqui citar uma fala do psicólogo suíço Carl Gustav Jung: "Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana".
            Outra metáfora acomete minha mente quando falo deste encontro entre paciente e terapeuta. É como se estivéssemos ali, assistindo à metamorfose de uma borboleta; como se a psicoterapia possibilitasse ao paciente a oportunidade de transformação, de modo que este deixaria seu casulo e sairia voando. Quando uma borboleta alça vôo, é capaz de explorar muito lugares, conhecer vários jardins e colher o néctar de diversas espécies de flores. Faço esta comparação com o intuito de mostrar que o paciente, ao conhecer a motivação de seus sintomas, transforma-se no melhor que ele pode ser - como a citação de Freud que mencionei mais acima. Não acrescentamos nada a ele, trabalhamos com aquilo que ele é, com potencial que ele tem e que é inerente à sua constituição subjetiva. Assim, funcionamos também como uma espécie de espelho, no qual o paciente contempla-se e vê refletida sua imagem e, olhando bem para ela, enxerga suas belezas e imperfeições. Creio que levar em conta o inconsciente, o que está latente no comportamento manifesto é o grande mérito da psicoterapia psicanalítica. Então, compreendo Freud quando este diz que "comparado com outros procedimentos terapêuticos, a psicanálise é, fora de dúvida, o mais eficiente" (1933 [1932], 1996, p. 150 - 151).
            Ser psicoterapeuta é a arte de se deparar com o inusitado, situações que a teoria e a técnica não dão conta de explicar. Em seu texto Sobre o início do tratamento (1913, 1996), 1996, Freud faz uma analogia entre o jogo de xadrez e a Psicanálise: ambos tem regras, mas no decorrer do jogo e da análise, acontecem situações em que as normas são postas em xeque.
A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanismo da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que é habitualmente errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado. Estas circunstâncias, contudo, não nos impedem de estabelecer para o médico um procedimento que, em média, é eficaz (p. 139).

Em minhas primeiras experiências, descobri que a clínica com crianças pode nos proporcionar altas aventuras, e elas são capazes de colocar nosso “saber” na berlinda. Em algumas situações, somos impelidos - pelo afeto dos pequenos -  a realizar seus pedidos, que são recheados de carinho. Contarei, no relato de meus contos, vivências com as quais meus pequenos grandes pacientes me presentearam. Preciso deter-me aqui, pois as histórias são secretas, vocês só podem saber no final. Vamos continuar falando de psicoterapia? Pois sim. Como vocês perceberam, falar de meus pequenos permite-me usar e abusar da linguagem infantil. Precisamos voltar à psicoterapia, porque ela é muito importante.
            Em seu texto Sobre a psicoterapia (1905 [1904], 1996), Freud defende, novamente, a terapia analítica como o modo mais eficaz de potencializar a transformação do paciente, comparada as outras modalidades psicoterápicas. Diz ainda que o método psicanalítico é o mais interessante, além de ser o único que ensina algo acerca da etiologia e dinâmica dos fenômenos psicopatológicos. Ela não tem a pretensão de introduzir nada de novo no paciente, mas sim trazer os conflitos que estão dentro para a fala do sujeito. Por isso, preocupa-se tanto com a gênese dos sintomas e com a trama psíquica da ideia patogênica (p. 246 - 247). Como estou de acordo com Freud, permito-me aqui fazer minhas associações livres sobre o que imaginei quando li a palavra trama: vi um gato amarelo, com um novelo de lã azul, tentando incessantemente desenrolá-lo. Devaneios à parte, é preciso estar atento às exigências da Psicanálise: ela exige sinceridade total do paciente e também muita técnica do médico (p. 249).
            Entretanto, Winnicott (1960, p. 47) diz: um relacionamento vivo entre duas pessoas dá espaço ao crescimento. Ora, com estas palavras Winnicott pode responder a Freud que a psicoterapia pode ser divertida, assim como são as crianças. Mas Freud rebateria ao dizer que o desabrochar do inconsciente está ligado ao desprazer (1905 [1904], 1996, p.252). Para resolver a situação, Lacan veio conversar com eles e disse que a verdade do inconsciente encontra-se nas entrelinhas (1957, p. 438). Eis a solução: podemos captar o inconsciente nas vacilações de nossa consciência, enquanto a psique encontra-se imersa na vivacidade do processo terapêutico. Lacan salva, agora, Freud e Winnicott.
            Não obstante, o psicoterapeuta psicanalítico continua tendo uma batalha a travar: contra as forças que tentam arrastá-lo abaixo do nível analítico (FREUD, 1915 [1914], 1996, p. 188). Quando atende-se crianças, manter a abstinência é uma tarefa ainda mais desafiadora, uma vez que elas cativam e conquistam facilmente nossos sorrisos mais espontâneos. Mas também é válido considerar que, para que nós consigamos cativar a criança é necessário ser mais ativo do que em uma psicoterapia com adultos. É preciso envolver-se na brincadeira delas. Por quê? Ora, porque Winnicott (1985, p. 67), que tanto cuidava das criancinhas, disse que as elas brincam com mais espontaneamente com uma pessoa brincalhona. 
            Brincar é a tarefa do psicólogo infantil. A terapia do brincar foi bastante utilizada em anos do pós-guerra, com o intuito de auxilia-las a lidá-las com os traumas que sofreram na violência bélica (BROCK, 2011, p. 30). Adianto que as histórias que contarei mais adiante foram vividas em meio a uma guerra, e a guerra eles reproduzem comigo. Desejam fazer guerra porque sofreram os efeitos desta na pele. Wallon (2008, p. 169) disse que a representação introduz novas relações entre o elas e o homem. Presumo que isto demonstre, de um modo belo, o quão importante são os brinquedos, as brincadeiras e o brincar para as crianças. Brincar é representar; fazer guerra equivale a expressar o desejo de destruir o que há muito vem sendo destruído.

É claro que em suas brincadeiras as crianças repetem tudo o que lhes causou grande impressão, tornando-se, por assim dizer senhoras da situação. Por outro lado, porém, é óbvio que todas as suas brincadeiras são influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer e de fazer o que as crianças crescidas fazem (FREUD, 1920, 1996, p. 26 – 27).

            No brincar, o que emerge é o não-resolvido, o que pulsa, o que foi tirado e mutilado com tiros de armas potentes de uma guerra: a guerra que existe entre os significantes, o enredo dos complexos familiares. Assim, a criança mostra-me que a guerra, de modo geral acontece no território familiar. Demonstra-me que é sábia, pois já compreende – inconscientemente ou não – o que acontece consigo e, consequentemente, mostra-me o caminho que devo seguir para poder ajuda-las. Elas que sabem, eu não.
            Para apreender a brincadeira, é necessário deter a atenção àquilo que a criança diz sobre suas construções, às narrativas que delas tira, pois as palavras que escolhem para associar aos seus atos encontram-se relacionadas com o ambiente em que vivem e também com suas verdadeiras experiências (BROCK, 2011, p. 33). Nem as crianças, que valem-se tanto dos atos para discursar, libertam-se da palavra. Dolto(1999) decerto tinha razão ao dizer que a palavra é o verdadeiro objeto transicional.
            O que faço como psicoterapeuta infantil? Desenho e brinco. As brincadeiras são as mais variadas, desde os clássicos ‘esconde-esconde’ e ‘pega-pega’ até escalar os poofs da sala de ludoterapia do CAP. Mais interessante ainda é construir e descontruir junto aos pequenos, acompanhar a evolução de suas brincadeiras, pois elas designam o quanto eles estão organizados internamente. Construir e destruir! Creio que vocês estejam curiosos para saber o que isto significa. Porém, a descrição destas situações ficará alhures. Gostaria de aqui dizer que é preciso brincar também para dizer não e dar limites; é necessário compreender, mas também preparar para a vida.
            Para sintetizar minhas primeiras experiências enquanto psicóloga clínica neste estágio, trago um depoimento de um paciente de Lacan registrado no documentário Um encontro com Lacan², onde este fala sobre a experiência de fazer análise com o eminente psicanalista. Ele disse que ‘Lacan o segurava com uma mão e o sacudia com a outra’. Penso que isto seja também o que fazemos com nossos pacientes em terapia: trazemos à tona seus afetos reprimidos, ao passo que fornecemos apoio no momento de encarar o desprazer que decorre da superação das resistências. Por conseguinte, nossa tarefa seria mostrar a verdade ao paciente - o inconsciente, o desejo - e, concomitantemente oferecer suporte para o paciente lidar com seus afetos reprimidos, pois, justamente por serem difíceis de encarar foram recalcados. Portanto, é um trabalho de equilíbrio, de dosagem de afetos e, acima de tudo, de cuidado com o Outro que encontra-se fragilizado, face-a-face conosco, em busca de alívio para suas dores anímicas. Por isso, sentir o que se passa com o paciente é tão imprescindível; creio que essa seja a base da realização de um bom trabalho no campo da psicologia clínica.

Um tratamento analítico exige do médico, assim como do paciente, a realização de um trabalho sério, que é empregado para desfazer as resistências internas. Através da superação dessas resistências, a vida mental do paciente é modificada permanentemente, é elevada a um alto nível de evolução e fica protegida contra novas possibilidades de adoecer. Esse trabalho de superar as resistências constitui a função essencial do tratamento analítico (FREUD,1917 [1916, 17], 1996, p. 452).

Autora: Viviane Peter Casser
CRP: 07/24449

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