A relevância da Transferência na Psicoterapia



É próprio das verdades nunca se manifestarem por inteiro. (LACAN)

Tudo o que sabemos sobre o inconsciente, desde o início, a partir do sonho, nos indica que existem fenômenos psíquicos que se produzem, se desenvolvem, se constroem para serem ouvidos... (...) E para serem ouvidos por um Outro (LACAN, 1961, p.177).

O paciente almeja ser, de fato, ouvido, e, para que esta escuta ocorra de modo efetivo, é necessário que o inconsciente do analisando seja interpretado, partindo do pressuposto de que a Psicanálise caracteriza-se, por ser ela mesma, a arte de interpretar. Por isso, Freud conjectura em seu texto 'Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise' (1912) que o médico deve ter uma escuta atenta. Na obra 'Interpretação dos sonhos' (1990, 1996, p.163), o autor diz que "o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica (...) em sua natureza interior é tão desconhecido para nós quanto a realidade do mundo externo, e se apresenta de modo tão incompleto pelos dados da consciência quanto o mundo externo pela comunicação dos sentidos." Logo, algo que desconhecemos nos move, algo que não nos é acessível, aquilo que não falamos diretamente, mas que é inerente às vicissitudes dos nossos atos: o sujeito não está apenas na fala, mas também no ato. Ao citar Michel Pêcheux, Eni Orlandi (2011, p. 211) disse que a linguagem serve para "comunicar e para não comunicar". Em sua fala, o paciente esconde o que lhe causa desprazer, consciente e inconscientemente; em seu discurso, mascara e, além disso, existem fatos sobre os quais não fala. Para que venha à tona tanto a rememoração quanto a atuação, a presença da transferência na relação terapêutica é imprescindível. Ela funciona como uma espécie de mediadora, como um canal de comunicação entre paciente e terapeuta.

Em seu texto 'Dois verbetes de Enciclopédia" (1923 [1922], 1996, p. 258), Freud supõe que regularmente forma-se entre o par analítico uma relação emocional especial, que vai muito além dos limites racionais. Na obra 'Esboço de Psicanálise' (1940 [1938], 1996, p. 258), diz que é na transferência que "o paciente produz, perante nós, com clareza plástica, uma parte importante da história da sua vida, da qual, de outra maneira, ter-nos-ia provavelmente fornecido apenas um relato insuficiente." Condensando o enunciado - ou a enunciação - destes textos, engendro um pensar: só existindo vínculo na relação o paciente é capaz de contar aquilo que não sabe, aquilo que quer. Há situações que se fazem presentes no setting apenas perante a transferência. Entretanto, ela é uma faca de dois gumes, visto que é também a arma mais forte da qual se vale a resistência. Para que a transferência não se transforme em um empecilho para o sucesso do tratamento, sua intensidade deve ser utilizada para a superação das resistências (FREUD, 1913, 1996, p. 158). Por meio deste abandono das resistências, a vida mental do paciente é modificada e fica protegida contra novas possibilidades de adoecimento (FREUD, 1917 [1916 - 17], 1996, p. 452). Portanto, o psicoterapeuta precisa ter em mente que, entre ele e seu paciente, se estabelece uma "neurose" artificial, onde a totalidade da "doença" se concentra (FREUD, 1917 [1916 - 17], 1996, p. 445). Estas aspas que utilizo ao redor das palavras neurose e doença significa que não concebo meus pacientes como neuróticos, tampouco como doentes. São sujeitos que estão com dificuldades em lidar com seus conflitos... Em resumo, na transferência, o paciente atualiza seu sofrimento latente de um modo  que não se apercebe dele.

Com o propósito de voltar a Lacan, busquei nos "Escritos" textos que me remetessem ao tema em questão. Encontro em "Intervenção sobre a Transferência" uma provocação que me satisfaz: Lacan pergunta o que seria interpretar a transferência e responde à sua própria indagação, ao dizer que é preencher com um engodo o vazio de um ponto morto. Porém, este engodo é útil, pois reativa o processo (p. 225). Penso que Lacan tem muito a nos ensinar com este trecho, pois é uma astúcia e uma audácia - a meu ver - dizer que devemos utilizar a transferência para obter ainda mais transferência, de modo que esta chegue no seu auge: quanto mais transferência, maior a qualidade da interpretação.  No final do mesmo texto, Lacan faz uma boa síntese, na qual evoca o conceito e a função da transferência. Segundo o autor, ela teria "sempre o mesmo sentido de indicar os momentos de errância e também de orientação do analista, o mesmo valor de nos evocar à ordem de nosso papel: um não-agir positivo, com vistas à ortodramatização da subjetividade do paciente" (1951, p. 225).

Caracterizando-a de outro modo, Lacan (1951, p. 224) intervém dizendo que ela nada mais é do que o aparecimento, em um momento de estagnação da dialética analítica, dos modos permanentes pelos quais o sujeito constitui seus objetos. Ou seja, no fenômeno transferencial, estão inerentes os estereótipos relacionais que o sujeito sustenta em sua vida. Além disso, o autor diz que a simples presença do analista introduz, antes mesmo de qualquer intervenção, a dimensão do diálogo. Desta maneira, o psicoterapeuta tende a ativar a prontidão da libido, já que possuímos, naturalmente, ceta dose de capacidade para o amor (FREUD, 1916 [1915], 1996, p. 318). Ao conhecer o terapeuta, o paciente pressupõe que este terá algo a oferecer-lhe e, por isso, oferta-lhe seu afeto. Esta concepção faz o amor perder um pouco o romantismo pelo qual é enroupado na sociedade ocidental. Ademais, coloca-o em um patamar mais claro e explicativo.

(...)

Em suma, o fenômeno transferencial pode também ser definido "uma região intermediária entre doença e a vida real, por meio da qual a transição de uma par a outra é realizada (FREUD, 1914, p. 170). Assim, é possível mostrar ao paciente a natureza do que acontece na relação psicoterapêutica e elucidar ao mesmo que ele mostra em terapia o modo como se relaciona com os sujeitos que compõem sua vida.

Autora: Viviane Peter Casser.
CRP: 07/24449

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