A psicoterapia enquanto zona intermediária
Donald Winnicott - psicanalista que preocupou-se com a
importância do ambiente satisfatório para o desenvolvimento do indivíduo -
postulou em sua obra Tudo começa em casa (1970, p. 28) que nossas
vivências estariam segmentadas em três: nossa vida no mundo, a qual é permeada
pelas relações objetais; a vida da realidade psíquica pessoal, nossas reflexões
internas e, finalmente, a área da experiência cultural. "A experiência
cultural começa como um jogo e conduz ao domínio da herança humana, incluindo
as artes, os mitos da história, a lenta marcha do pensamento filosófico e os
mistérios da matemática, da administração de grupos e da religião". A
chamada experiência cultural manifesta-se na zona intermediária. Em seu livro O
brincar e a realidade (1975, p. 26), o autor define a zona
intermediária como aquela área em que a mãe inicialmente concede ao bebê para
que este possa exercitar seu potencial de criar; encontra-se localizada entre a
criatividade primária e a percepção
objetiva. Vejo este conceito de zona intermediária muito presente no
desenvolvimento do indivíduo. Mentalmente, traço uma linha do tempo e penso o
que esta área intermediária proporciona ao indivíduo em cada etapa de seu desenvolvimento.
Inicialmente, esta área manifesta-se em sua relação com a mãe: é a partir da
devoção da mãe à criança que surge o sentimento de confiança básica no bebê.
Posteriormente, há o surgimento de objetos transicionais, paninhos e ursinhos
que exercem a função de dar segurança ao bebê e de aliviar sua ansiedade. À
medida em que a criança cresce, surge o brincar. "É no brincar, e talvez
apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua capacidade de
criação" (1975, p. 79). Este brincar propicia a descoberta de seu eu. As
atividades culturais na idade adulta derivam deste brincar na infância: as
pintura, a música, a literatura e outras tantas manifestações artísticas
exercitam o potencial criativo do sujeito.
Seguindo esta linha de raciocínio, penso na psicoterapia
enquanto zona intermediária, o que não pertence nem ao intrapsíquico, nem ao
extrapsíquico. É um espaço de criação, onde sujeito exercita diversas
possibilidades de ser. No processo terapêutico, é possível notar a presença
concomitante das várias facetas que a zona intermediária assume ao longo de
nossas vidas. A presença do psicoterapeuta tende a gerar um sentimento de
confiança no paciente, tal qual ao que a mãe pode proporcionar na tenra
infância do indivíduo. Ademais, faço um paralelismo entre o estar em
psicoterapia e explorar um objeto transicional: a sessão seria o local no qual
o sujeito sente-se seguro, assim como acontece
com a criança quando brinca com seus objetos transicionais. O próprio falar, a
palavra é um momento de criar uma nova realidade, na qual projetamos nossas
fantasias, e, por meio destas, falamos sobre nosso mundo imaginário e simbólico
– e também real.
Françoise Dolto (2008, p. 77)
perguntava-se o que era realizar um trabalho psicoterápico, visto que nenhuma
sessão e nenhum tratamento é igual ao outro, eles também diferem em sua duração
e o conteúdo das sessões varia. No que tange à psicoterapia infantil, a
presença da zona intermediária torna-se ainda mais evidente, posto que a
essência do trabalho com crianças em consultório se dá por meio do brincar.
"A experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado
primeiramente na brincadeira" (WINNICOTT, 1975, p. 139). Criar implica dar
existência a algo novo: um fazer que indica que aquele que é está vivo
(WINNICOTT,1970, p. 31). Pichon-Rivière (1999, p. 21) concorda com Winnicott,
mas diz que há contradições no processo de criação, e
que estas contradições vão se resolvendo na própria ação de criar. Então, o
sinistro transforma-se em algo belo, e o
conteúdo e a forma recriam uma nova estrutura. Além de criar, psicoterapia é
criar em cima do que já foi há muito criado, desde as primeiras relações com
mãe, na primazia das trocas de afeto: no sugar do seio. Recriar, criar algo novo
requer a zona intermediária. Volto aos meus ditos: nós psicoterapeutas somos a
verdadeira zona intermediária. É preciso que sejamos, mais do que nunca, apenas
"objetos", como por exemplo, um quadro, que tem sim uma moldura própria, mas que
oferece uma tela (quase) em branco para que ao paciente pinte sua obra-prima.
Autora: Viviane Peter Casser
CRP: 07/24449
Autora: Viviane Peter Casser
CRP: 07/24449
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